Um decreto assinado em junho pelo presidente Jair Bolsonaro e pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) para livrar empresas produtoras de sal de uma grande investigação sobre crimes ambientais é “ilegal e inconstitucional’, de acordo com a Procuradoria da República no Rio Grande do Norte. O órgão pediu à Justiça que seja declarada a nulidade do decreto presidencial.
Segundo a Procuradoria, o processo administrativo que deu origem ao decreto foi baseado “em motivo falso”.
No decreto, Bolsonaro considerou uma região ocupada pelas indústrias de sal em oito municípios do RN como “de interesse social”, o que poderá tornar sem efeito prático 18 ações judiciais abertas pelo MPF em janeiro passado para forçar as indústrias a tomarem medidas para impedir agressões ao meio ambiente.
De acordo com a Procuradoria, para ser assinado, o decreto requeria uma “prova especial” técnica que poderia dizer se não havia alternativa para os empreendimentos. Para os procuradores da República, essa alternativa existe e é viável, mas não foi considerada.
As indústrias realizaram “uma ação política” para obter o decreto presidencial, segundo a Procuradoria. “Pelo que soubemos, houve apoio político de um deputado daqui que teve acesso, de alguma forma, ao presidente e conseguiu convencê-lo [a assinar o decreto]. Não surpreende, por conta desse perfil do governo de não dar atenção às questões ambientais”, disse à reportagem o procurador da República Emanuel de Melo Ferreira.
Ferreira afirma ter consultado o processo administrativo que deu origem ao decreto que tramitou na Casa Civil e nos ministérios do Meio Ambiente e da Economia. “Nesse processo praticamente não há nada de preocupação com o meio ambiente. É só realmente a coisa do interesse econômico. Os tratados que o Brasil assina e a Constituição preconizam o desenvolvimento sustentável. Ninguém aqui [MPF] quer acabar com a indústria do sal, queremos equilibrar a atividade econômica com o meio ambiente”, afirmou Ferreira. O procurador disse que a área sob crítica corresponde a apenas 10% de toda a área utilizada pelos empresários.
As salineiras potiguares respondem por cerca de 95% da produção de sal no Brasil, com cerca de 6 milhões de toneladas ao ano. Segundo o sindicato dos empresários, geram 60 mil empregos diretos e indiretos na região. O enfrentamento do MPF com as salineiras começou em 2013. Naquela época, a Procuradoria constatou que o órgão ambiental estadual, o Idema, não estava fiscalizando as indústrias de sal. Isso deu origem a uma iniciativa da superintendência do Ibama local, a Operação Ouro Branco.
Os fiscais do Ibama estiveram em 35 plantas de produção de sal, constatando “a ocupação irregular de aproximadamente 3 mil hectares” de APPs (Áreas de Proteção Permanente), como manguezais e margens de rio.
O Ibama lavrou 116 autos de infração, dos quais 19 por ocupação irregular de APPs, 52 por problemas em cadastros técnicos ambientais, 34 por ausência de licença ambiental, quatro por poluição e quatro por outras infrações.
“Foi a partir daí que tomamos conhecimento de todos esses ilícitos. O mais impactante são as pilhas de sal, são toneladas de sal na beira do rio, na beira do mar, e comprovadamente com vazamentos para a vegetação”, diz Ferreira.
A continuidade da atividade nas APPs, segundo o MPF, pode levar a inúmeros danos ambientais, entre os quais “impermeabilização de planícies de maré; soterramento de gamboas [remansos de rio e mar] e braços de maré; aumento dos processos erosivos; alteração do ciclo hidrológico regional e da qualidade da água gerada por efluentes; diminuição da biodiversidade associada ao manguezal; entre outros”.
Após a operação do Ibama, o MPF instituiu, em 2013, um grupo de trabalho que realizou rodadas de negociação com empresários a fim de impedir a paralisação das atividades das salinas. Porém, segundo o MPF, ao longo dos anos os empresários deixaram de cumprir uma série de medidas.
Em janeiro de 2019, a Procuradoria ajuizou 18 ações civis contra 18 empresas do setor para pedir que a Justiça determine a realocação gradativa das salinas, retirando-as das APPs. Em junho, apareceu o decreto presidencial publicado no “Diário Oficial da União”.Para a Procuradoria, o decreto “se insere nesse mesmo contexto de permissividade em relação aos graves danos ambientais causados pela indústria no sal no Estado do Rio Grande do Norte, merecendo atuação firme e efetiva do Poder Judiciário”. A ação para declarar a nulidade do decreto foi ajuizada no último dia 25. Num primeiro momento, a 10ª Vara Federal de Mossoró (RN) decidiu que a competência da ação, por envolver vários municípios, é da capital do Estado. O MPF vai recorrer desse entendimento.CRONOLOGIA2013 a 2018MPF promove audiências e tentativas de acordo com empresáriosJaneiro de 2019Após comprovação de danos ambientais, MPF ajuíza 18 ações civis públicas pedindo a realocação gradual da produção em Áreas de Preservação Permanente para outros locais. O prazo para adequação é de oito anos4 de Junho de 2019Presidente Jair Bolsonaro edita Decreto 9.824/19, que possibilita às empresas continuarem explorando as APPs mesmo após decisão do MPFJunho e Julho de 2019Liminares do TRF 5ª Região determinam que empresas apresentem plano de retirada de pilhas de sal das APPs25 de julho de 2019MPF pede anulação do Decreto 9.824/19Fonte: Ministério Público FederalOUTRO LADOProcurada pela reportagem para falar sobre o assunto, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República respondeu com uma frase: “O Planalto não comentará”. O Ministério do Meio Ambiente respondeu que “a decisão acerca da conveniência e oportunidade de se editar decretos é do sr. presidente da República”. Indagado se o ministro não participou do decreto, não houve resposta.Em nota à reportagem, o presidente do SiesalRN (Sindicato das Indústrias de Extração do Sal do RN), Francisco Souto Filho, disse que o decreto presidencial “veio a regulamentar o previsto no Código Florestal e permitir a continuidade regular das salinas existentes há muitas décadas no RN, respeitando-se as restrições ambientais existentes”.”O sindicato e o setor apoiaram a edição do decreto, esclarecendo às autoridades competentes as especificidades das salinas, histórico, ocupação, processo produtivo, imprescindibilidade de sua localização e consolidação centenária no RN”, diz a nota.Sobre as ações civis ajuizadas pela Procuradoria, o sindicato afirmou que “as empresas isoladamente apresentaram suas defesas”. Sobre as autuações do Ibama, afirmou que “os temas ali tratados não envolvem, necessariamente, o mesmo questionamento das Ações Civis Públicas”. O sindicato afirmou ainda que o sal produzido no Rio Grande do Norte “é pilar fundamental na cadeia produtiva nacional que envolve o setor portuário, os caminhoneiros, a indústria alimentícia, a indústria química e a pecuária nacional”.Procurado, o Ministério da Economia não se manifestou até o fechamento deste texto.
Fonte: FOLHAPRESS
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