SÃO PAULO, SP, E PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – “Fazia semanas que eu vinha alertando: vão esperar acontecer em um clube grande para que tenha repercussão e comecem a pensar”, afirma Marcelo Carvalho, fundador e diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
O instituto faz um mapeamento dos casos de racismo no esporte e produz relatórios anuais desde 2014. A conta de 2019 já aponta 14 denúncias no futebol brasileiro (12 no estádio e 2 registradas no ambiente da internet).
O número, ainda no início de maio, é altíssimo se comparado aos que foram contabilizados nos quatro anos com relatórios já publicados: 19 (em todo 2014), 24 (2015), 19 (2016) e 19 (2017).
Os dados de 2018 ainda estão sendo computados, porém um levantamento preliminar aponta 53 casos. Um enorme salto, portanto, cujo ritmo vem sendo mantido em um péssimo início de 2019.
Era por isso que Carvalho estava alarmado. A previsão dele se confirmou quando uma câmera na partida Grêmio x Fluminense captou uma voz na Arena do Grêmio, em Porto Alegre, chamando o atacante colombiano Yony González de “macaco”.
A repercussão foi bem maior em um duelo de times grandes. Igor Julião, companheiro de González no Fluminense, compartilhou o vídeo publicado por um torcedor e pediu “medidas urgentes”.
Para Marcelo Carvalho, a situação mostra que os jogadores estão tendo coragem e consciência para denunciar. Mas, para ele, não é só isso que explica o crescimento no número de casos registrados.
“São duas coisas paralelas. Existe um maior encorajamento dos atletas negros para denunciar e também existe grande quantidade de pessoas que expressam seu preconceito nos estádios”, disse.
O que provoca alento para Carvalho, que também é negro, e em outros pesquisadores, é que ao menos haja agora um questionamento maior em torno do tema. Marcel Diego Tonini, doutor em história social e autor de trabalhos diretamente ligadas ao futebol, recordou o caso Desábato/Grafite, em 2005, no qual o denunciante foi bastante questionado pelo ato.
“Hoje, é diferente, felizmente. Contudo, como as federações e os clubes continuam empurrando o problema com a barriga, acabam autorizando a reincidência”, afirmou.
O próprio Grêmio, eliminado da Copa do Brasil de 2014 na Justiça desportiva pelas ofensas racistas ao goleiro santista Aranha, é um exemplo dessa reincidência.
“Os casos recentes envolvendo uma parcela dos torcedores agravam essa imagem. E nem assim o clube se mexe e combate de forma genuína e eficaz o racismo em suas dependências”, afirmou Tonini.
Nesse cenário, em que o Bahia tem se notabilizado como positiva exceção, as ações reais partem de fora. Quase todos os principais times do país têm torcedores que formaram grupos de combate ao preconceito, incluído na lista o Tribuna 77, de gremistas.
“Dentro do Grêmio, é cultura se referir a um colorado como macaco, há cânticos nesse sentido. Pedimos o banimento desse termo dentro do estádio”, disse Hayane Telles, 27, integrante da Tribuna 77.
O problema não é exclusividade do Grêmio, e o assunto tem se mostrado particularmente sensível no Rio Grande do Sul. Os gaúchos lideram com folga a lista dos estados com maior número de denúncias de racismo.
Entre os relatórios já publicados pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, houve 26 denúncias feitas no Rio Grande do Sul, número que crescerá bastante com os relatórios de 2018 e 2019. São Paulo (13) e Minas Gerais (8) aparecem na sequência.
O ex-árbitro Márcio Chagas da Silva, 42, sentiu o problema na pele e pendurou o apito por essa razão, em 2014. O ex-árbitro gaúcho tem sido vocal em relação ao assunto.
“É triste relatar, mas é necessário discutir. Sempre que se fala em racismo, alguém sugere deixar para lá, trata como algo secundário”, declarou Chagas, ainda irritado com o tratamento reservado a quem denuncia. “O racismo é um crime perfeito. Quem comete consegue virar vítima, e quem sofre é quem vira o culpado”, lamentou ele, hoje comentarista esportivo.
O ex-árbitro, como quase todos os incomodados com essa a situação, cobra atitudes eficazes das “entidades, clubes e federações”. É consenso, embora as atitudes geralmente sejam superficiais.
Marcelo Carvalho, que continua fazendo seu trabalho de formiguinha computando cada caso, vê papel fundamental dos clubes. Ele foge da colocação de que “o esporte é um espelho da sociedade”, o que eximiria as entidades. Mas pede que todos, dentro e fora do futebol, assumam uma verdade inconveniente.
“A sociedade brasileira precisa se reconhecer como uma sociedade racista para, enfim, trabalhar contra o racismo”, disse o pesquisador.
“É impossível a gente tratar de uma doença se a gente não acredita que tem essa doença”, concluiu.
Fonte: NOTICIAS AO MINUTO
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